A
PRESENÇA DE MITOS DO INDIVIDUALISMO MODERNO EUROPEU PRESENTES NA LITERATURA
AFRICANA, REPRESENTADA PELA OBRA MAYOMBE,
DE PEPETELA.
Introdução
Uma
das maiores virtudes que a literatura africana possui é estar associada ao
fantástico[1] e
conter inúmeros elementos mitológicos que exprimem a alma e a cultura de seu
povo. Tais características se devem ao fato de que, dentre todas as literaturas
do mundo, é sem dúvida nenhuma a que mais sofre influência da oralidade, tendo
em vista que a maioria da população original da África é de origem indígena e
constituída por tribos, onde a tradição da escrita é praticamente nula[2].
Apesar
de ser bastante recente, pois suas primeiras obras datam a partir do início do
século XX após a chegada da imprensa no continente, e também ser escrita
geralmente em língua européia, proveniente do país colonizador, possui
identidade e características próprias, pois, tanto na poesia quanto na prosa,
tende a narrar, sob o ponto de vista africano, os diversos problemas
enfrentados por seus povos, tais como o tráfico de escravos, o domínio e
exploração dos países europeus, as guerras civis, a luta por independência,
entre outros. Porém, mesmo sendo por si só tão rica e original, é quase
inevitável de se encontrar nela referências tanto explícitas quanto implícitas
a mitos europeus, seja da antiguidade ou da modernidade.
Tal
afirmação é evidenciada em Mayombe, romance
escrito em língua portuguesa, um dos idiomas de Angola, país de origem de seu
autor, Artur Carlos Maurício Pestana dos Santos[3],
conhecido pelo pseudônimo de Pepetela. Este livro retrata a luta de
guerrilheiros do MPLA[4],
comparando Sem Medo, seu protagonista, a Ogun, que é o representante africano
da figura mitológica grega de Prometeu[5].
Por vezes, suas atitudes e personalidade assemelham-se e muito a mitos do
individualismo moderno, tais como Fausto, Dom Quixote e Don Juan[6]. A
referida obra será analisada com o intuito de identificar todos eles.
Objetivos
O
presente artigo tem por objetivo identificar a presença de mitos do
individualismo moderno europeu numa obra de literatura africana, sendo
escolhida para tal Mayombe, de
Pepetela, clássico literário angolano. Com isso, será possível observar o
quanto figuras mitológicas modernas como Fausto, Dom Juan e Dom Quixote, por
exemplo, têm suas características e atitudes, que lhe conferiram o status de
mito, evidenciados em personagens de literaturas provindas de outros
continentes, com culturas extremante diferentes, contextualizados em épocas
distintas.
Mayombe e o Mito de Prometeu
Quantos
há que sabem onde se encontra esse caminho de areia no meio da areia? Existem,
no entanto, e eu sou um deles. Sem Medo também o sabia. Mas insistia em que era
um caminho no deserto. Por isso se ria dos que diziam que era um trilho
cortando, nítido, o verde do Mayombe. Hoje sei que não há trilhos amarelos no
meio do verde. Tal é o destino de Ogun, o Prometeu africano. (PEPETELA, 1982,
p. 268)
Mayombe é explicitamente uma alusão
à tragédia clássica Prometeu Acorrentado,
de Ésquilo[7]. As
situações vivenciadas por Sem Medo, herói de Pepetela, bem como seu destino e
personalidade, assemelham-se a figura mítica de Ogun, da cultura ioruba, que
por sua vez é comparado na obra a Prometeu, um titã da mitologia grega.
A comparação entre mitos de
culturas tão distintas e posteriormente a associação ao protagonista do romance
aqui analisado é possível devido ao fato de que todos os citados passam pela
mesma sequência narrativa, conforme a afirmação de Francisco Salinas Portugal:
Com
efeito, o autor parece utilizar a referência mítica à história clássica de
Prometeu, à qual dá uma feição africana com a equivalência Ogun/Prometeu, para
sublinhar o carácter heróico, quase diríamos épico, dos factos narrados. A
funcionalidade, portanto, da referência mítica não iria além do seu valor como
tropo e em conseqüência, do nosso ponto de vista, estaríamos diante de uma
semiologização do mito. (PORTUGAL, 2001, p. 59)
Pode-se dividir a referida
sequência em três partes:
-
Transgressão: A figura mitológica comete um grande erro,
porém, com boas intenções.
Com Prometeu, a transgressão se dá
no momento em que ele rouba o fogo para entregar aos homens. Em Ogun, acontece
quando ele, mesmo proibido de beber vinho, o faz. Embriagado, molda seres
humanos defeituosos, tortos, corcundas, albinos, pois não eram cozidos
adequadamente. Já com Sem Medo, esse momento se configura quando ele e os
demais guerrilheiros do MPLA adentram o território da floresta Mayombe para
lutar contra o regime colonial português.
-
Punição: Uma entidade superior ao mito o castiga pela falta
que cometeu.
Em Prometeu Acorrentado, Zeus amarra o titã numa rocha e envia uma
águia para que ela devore seu fígado diariamente, pois ele se regenerava. A
punição sofrida pelo mito ioruba foi ter sido engolido pela terra, parando em
seus “intestinos” e lá ficando aprisionado. Por sua vez, Sem Medo e seus
subordinados, confinados na imensidão da floresta e caçados pelos militares
portugueses, passaram por diversos problemas de relacionamento, como traição,
preconceitos étnicos, insubordinação e desavenças, além de muita fome e
cansaço.
-
Reconciliação: Principal parte entre as três, pois
confere à figura o valor de mito. Acontece quando há um amadurecimento deste
ser, transformando-o em algo melhor.
Com
Prometeu essa etapa dá-se quando ele é liberto por Heracles e compra a
imortalidade do Centauro Quirão. Encarcerado na terra, Ogun adquiriu sabedoria
e conhecimento, sendo posteriormente possível a ele reconciliar os homens com
os deuses. Já Sem Medo, ao morrer no final da história, serviu de exemplo aos
seus comandados, fazendo com que entendessem o real motivo da causa por qual
lutavam.
“...
o significado último do mito prometeico é o da luta constante o homem para
atingir o ideal de verdade, é um caminho, uma viagem cheia de trabalhos, de
sofrimento, de solidão (uma iniciação) em que, só no fim desse percurso (e
precisar-se-á para isso a coragem do herói), atingirá o ideal da perfeição.”
(PORTUGAL, 2001, p. 58)
Portanto,
é válido afirmar que Mayombe conta de
forma moderna e “africanizada” o mito de Prometeu, transportando-o para a
realidade angolana, ao passo que o contextualiza com um importante momento
cultural vivenciado por seu povo. Entretanto, mesmo sendo uma referência direta
a um mito da antiguidade clássica, a personalidade e atitudes de seus
personagens remetem a mitos do individualismo moderno, conforme se verá a
seguir.
Sem
Medo e Fausto: A Busca Pelo Conhecimento e Poder
“Ai de mim! Da filosofia,
Medicina, jurisprudência,
E, mísero eu! Da teologia,
O estudo fiz, com máxima
insistência.
Pobre simplório, aqui estou
E sábio como dantes sou!
De doutor tenho o nome e mestre em
artes,
E levo por dez anos por estas
partes,
Pra cá e lá, aqui ou acolá
Os meus discípulos pelo nariz.
E vejo-o, não sabemos nada!” (Goethe,
2011, pp. 58-59)
O
mito fáustico, solidificado e imortalizado na peça teatral do escritor e
filósofo alemão Goethe[8],
tem início quando Fausto, personagem principal, tenta cometer suicídio, pois se
considerava um fracassado por não ter obtido o conhecimento ilimitado, mesmo
que para isso tivesse estudado todas as ciências possíveis e até utilizado
magia, algo passível de punição severa. Aproveitando-se desse momento, o
demônio Mefistófeles manifesta-se para ele e lhe propõe um acordo, assinado com
sangue, cujo tratado é conceder todos os desejos ao contratante em troca de sua
alma, pois, quando morrer, servirá o contratado no inferno. E assim começa a
queda de Fausto e a firmação de seu mito.
A
sede por conhecimento do personagem de Pepetela é demasiadamente parecida com a
de Fausto. Sem Medo entrou para o seminário ainda menino com o objetivo
primário de obter cultura para posteriormente ascender socialmente. Obviamente,
obteve uma rígida formação católica, porém, era rebelde a diversos conceitos
que lhe eram ensinados, pois seus mestres agiam exatamente da forma contrária
do que professavam. Assim como o protagonista de Goethe buscou encontrar as
respostas para seus anseios aprendendo e utilizando feitiçaria, algo
extremamente proibido, o herói angolano procurou naquilo que os padres diziam
ser pecado: o prazer sexual.
“Isso
levou-me a desejar o que os horrorizava, a querer conhecer o que eles temiam, a
procurar o que eles nos proibiam de ouvir ou sentir. Foi com misto de terror
sagrado, de prazer carnal e de prazer de vingança que tive a primeira mulher.
Em pleno seminário, num anexo; era uma criada que aliviava os seminaristas e,
quem sabe, alguns padres.” (PEPETELA, 1982, p. 36)
Sua rebeldia tornou-se visível.
Acabou por ser expulso do seminário após ter ameaçado bater em um padre. Aqui
configura o descenso de Sem Medo. Foi a partir desse momento que ele, mesmo
sentindo-se impuro por tanta transgressão que havia cometido contra a religião
que lhe fora ensinada, preferiu esquecer todos esses valores que havia
adquirido ao longo de sua juventude e partiu para a Europa, onde estudou e
aprendeu o comunismo, que mais tarde acarretaria em sua entrada para o MPLA e
posteriormente por todos os problemas
que passaria, culminando por fim em sua morte.
“...
tornou-se intolerável o medo do Inferno, senti-me danado, perseguido por mil
crimes e por todos os prazeres ignóbeis que praticara. A certeza de que estava
perdido foi tão grande que decidi que o Inferno não existia, não podia existir,
senão eu estaria condenado. Ou negava, matava o que me perseguia, ou endoidecia
de medo. Matei Deus, matei o Inferno e matei o medo do Inferno.” (PEPETELA,
1982, pp. 36-37)
Provavelmente,
a intenção do autor de Mayombe não
foi fazer uma referência direta à obra Fausto:
Uma Tragédia. Porém, comparar as obras e realizar uma leitura por este
ponto de vista é perfeitamente cabível.
Em ambas as obras têm-se a
sabedoria e o conhecimento relacionados ao sagrado, divino. Entretanto, há um
limite máximo para essas virtudes, delimitado por valores sociais, religiosos e
morais. Para superá-los, é preciso romper essas barreiras e praticar o que
teoricamente seria considerado “errado” pela sociedade. Tanto Sem Medo, quanto
Fausto, optaram por esse tipo de transgressão no afã de satisfazerem seus
desejos, e foi exatamente isso que ocasionou a série de acontecimentos que
constituíram tragédias em suas respectivas vidas.
Sem
Medo e Don Juan: Burla e Oposição Aos Valores Cristãos
“Don Juan: Mas se burlar
é já meu hábito antigo
por que perguntas, sabendo
minha condição?
...
Cagarolão: Os que fingis e
enganais
as mulheres, dessa sorte
o pagareis com a morte.
Dom Juan: Que tanto que me fiais!
Cagarolão com razão te chamam.
Cagarolão: Teus pareceres
segue, que em burlar
mulheres
quero ser Cagarolão...”
(MOLINA, 2004, p. 119)
Um
dos traços mais marcantes da personalidade de Don Juan Tenório, personagem
principal da peça O Burlador de Sevilha e
o Convidado de Pedra[9],
de Tirso de Molina, era o prazer que ele tinha em aplicar burlas em mulheres,
enganando-as para que pudesse se relacionar sexualmente com elas. Mesmo que
cristão, o jovem fidalgo agia dessa forma porque era contra os preceitos e
valores morais e religiosos da época, tais como o casamento e o amor cortês. No
decorrer da peça, ele engana quatro mulheres, sendo a última delas Aminta, uma
camponesa recém-casada. Para Don Juan, foi a mais perfeita burla que aplicou[10],
pois conseguiu desonrar socialmente o casal, destruindo o sagrado laço
matrimonial que havia entre eles.
Segundo
Ian Watt:
“Não
parece haver dúvida de que, para cada cem pessoas que secretamente desrespeitam
as leis da Igreja, do Estado e da família, há somente uma capaz de proclamar
mais ou menos abertamente sua oposição a tais leis. Sob esse aspecto, Don Juan
é profundamente representativo: para ele, mentir não tem a menor importância;
ele quer o que quer, e empenhado unicamente na satisfação dos próprios desejos,
não vê problema em conflitar-se com o mundo e suas leis.” (WATT, 1997, p. 110)
Vale
mencionar também que Juan agia como lhe aprovava porque valia-se de sua
condição social, extremamente privilegiada. Além de ser um fidalgo, conforme já
foi citado, seu tio, Don Pedro, era o homem de confiança do rei e poderia,
facilmente, interceder em seu favor. Assim sendo, o burlador não tinha medo
nenhum de ser punido pelos crimes que cometia. E isso lhe motivava ainda mais a
praticá-los.
Outro
aspecto relevante que mostra o quanto Don Juan era contrário aos princípios
cristãos fica evidenciado na forma com que utilizava se da promessa de
casamento para conseguir enganar suas vítimas, bem como o enorme medo que tinha
em cumpri-las, pois, na maior parte da peça, passa fugindo para que não fosse
obrigado a se casar com as mulheres que havia enganado. Seria normal, e até
desejoso, que os jovens da época a qual a obra é ambientada contraíssem
matrimônio. Porém, suas atitudes mostram o quanto de repúdio ele tinha para com
essa prática, tanto em se negar a fazê-la quanto no prazer em comprometer a
união de casais[11].
Sem
Medo também era contrário a muitos valores cristãos. Mesmo que suas atitudes,
bem ao contrário do protagonista de Tirso de Molina, não fossem desonrosas e
não visassem desmoralizar pessoas, por diversas vezes no texto ele reclama com
os companheiros, e algumas vezes consigo próprio, quando agia e pensava sob o
ponto de vista cristão, pois sabia que esses valores estavam enraizados dentro
dele, mesmo que não quisesse.
“-
Não creio. A Direção verá. Mas estes casos, no Movimento, implicam sempre um castigo.
Nem que seja uma suspensão.
-
Sim, a eterna moral cristã! – disse Sem Medo.
-
Moral revolucionária, camarada.
-
Deixa-te disso! Moral revolucionária,
nada. Seria moral revolucionária se todos os casos fossem sancionados ou nenhum
fosse. Há uma série de casos similares que se passam, toda a gente sabe, e não
se faz nada. Só quando provoca escândalo é que o Movimento se mete. Isso é
moral cristã, que se interessa pelas aparências.” (PEPETELA, 1982, p. 170)
Devido
sua educação ter-se dado dentro de um seminário, o protagonista de Mayombe foi doutrinado nos ensinamentos
católicos desde muito jovem. Conforme aqui já citado, passou a generalizá-los
como falsos quando percebeu que aqueles que os ensinavam não agiam conforme
pregavam. Com isso, passou a odiar a religião, pois considerava-a um
instrumento a mais de controle que os mais fortes utilizavam para dominar os
mais fracos.
Segundo
ele, o socialismo era a filosofia ideal a ser adotada, pois era a chave
fundamental para concretizar a liberdade do povo angolano do domínio português.
Admitia que muita coisa defendida por esses sistema era utópica, mas que mesmo
assim, dentre todos os outros, era o que mais se aproximava da verdade,
conforme mostra o seguinte trecho:
“Por
que a afirmação dum homem tem de se fazer sempre em oposição a todos os outros?
– pensou Sem Medo. Por que sempre a luta pela vida, a luta pelo lugar, ou a luta
pelo prestígio? Tal é o pecado original, não de que fala a Igreja, mas de que
fala Marx[12].”
(PEPETELA, 1982, p. 198)
Além
de considerar a doutrina cristã enganosa, Sem Medo passou a associá-la à
fraqueza humana. No decorrer da obra, em vários momentos adverte seus
comandados quando estes querem agir precipitadamente ou, mesmo debilitados e sem
condição de batalhar, queriam prosseguir a todo custo, por pura demonstração de
bravura. Para ele, tais ações denotavam a mentalidade fraca de um religioso,
que ao invés de agir pela razão, age pela emoção, enganando-se até mesmo quando
a derrota é certa. Com isso, entregam-se a uma morte inútil, enfraquecendo o
movimento e deixando a vitória cada vez mais difícil de ser alcançada.
Mesmo
que moralmente bastante distintos, Don Juan e Sem Medo, não só por seus
discursos, mas principalmente pela clareza de suas atitudes, evidenciam o desprezo
que possuem pela religião cristã e seus princípios, e podem perfeitamente serem
comparados sob esse aspecto, pois, apesar do fator marcante no mito donjuanesco
ser a questão da bula e a sedução, (o que não ocorre com o personagem africano)
o que faz com que o burlador de Sevilha aja da seguinte forma é exatamente o
ódio que ele ostenta contra os valores morais e religiosos da época. Tal qual é
o foco responsável por moldar a personalidade do guerrilheiro líder de Mayombe e desencadear as escolhas que
ele teve em sua jornada.
As
Duplas em Mayombe e O Engenhoso Fidalgo Dom Quixote de La Mancha
“-
Como posso me enganar no que digo, traidor escrupuloso? – disse D. Quixote. –
Dize-me, não vês aquele cavaleiro que a nós vem, sobre um cavalo rosilho rodado,
que traz na cabeça um elmo de ouro?
-
O que eu vejo e lobrigo – respondeu Sancho. – é só um homem montado num asno
pardo, como o meu, que traz na cabeça uma coisa que brilha.” (CERVANTES
SAAVEDRA, 2002, p. 276)
Um das
principais características que marcam o mito quixotesco e o tornam tão especial
é a presença da dupla formada entre o cavaleiro e Sancho Pança. No mundo todo a
imagem de D. Quixote é sempre concebida ao lado de seu fiel escudeiro, sendo
praticamente impossível desassociá-los.
É somente no começo da história,
narrada respectivamente em O Engenhoso
Fidalgo Dom Quixote de La Mancha e O
Engenhoso Cavaleiro Dom Quixote de La Mancha, ambos de Miguel de Cervantes[13],
que o destemido fidalgo sai sozinho em busca de aventuras cavaleirescas. Quanto
terminou sua primeira jornada, formulou em sua mente insana que suas ações não
haviam sido vitoriosas porque lhe faltava algo necessário a todos os cavaleiros
andantes: um escudeiro. Foi então que chamou Sancho Pança, um pobre lavrador
que morava pela vizinhança, para lhe prestar serviços e fazer companhia, prometendo-lhe
uma ilha para que pudesse governar[14].
Assim a dupla foi formada e juntos vivenciaram diversas aventuras, na maioria
das vezes cômicas.
Psicologicamente,
a união desses dois personagens é de fundamental relevância para o romance,
pois, sozinhos, são imperfeitos; juntos, completam-se e suprem a falta onde há
deficiência no outro. Devido a sua loucura, o fidalgo é valente, visionário e
otimista, acreditando que tudo o que lhe acontece colabora para o seu bem e
glória. Possui estudo e um bom nível de intelectualidade, graças às diversas
leituras realizadas ao longo de sua vida. Sancho, por sua vez, ao contrário de
senhor, coloca os bens materiais acima de tudo. Longe de ser valente, procura
agir pela razão e simplicidade. Não possui conhecimento acadêmico, mas, por
diversas vezes, mostrou-se mais sábio do que o cavaleiro.
Sobre
as disparidades entre as personalidade de Dom Quixote e Sancho Pança, Ian Watt
faz o seguinte comentário:
“No
plano psicológico, Quixote e Sancho representam as polaridades do espírito e da
carne, cérebro e estômago, céu e terra, sonho e realidade, passado e presente,
literatura e vida; na esfera social, evidencia-se a dicotomia de cavaleiro e
camponês, do herói autoproclamado em face do covarde confesso, de introvertido
e extrovertido, de solitário e de gregário, de solteirão e homem casado.”
(WATT, 1997, p. 85)
Assim
sendo, pode-se afirmar, sem dúvida
nenhuma, que Pança é a representação do alter ego[15]de
Quixote, e vice-versa. Mesmo sendo a
personalidade “dominante”, o nobre admite em vários momentos no texto que o
camponês tem razão em determinadas situações e isso lhe serve de auxílio para
frear seus impulsos, resultantes de sua mente perturbada. A relação entre os
protagonistas de Mayombe acontece de
uma forma muito semelhante.
Sem
Medo, também chamado de Comandante, é o líder de um grupo de guerrilheiros
pertencentes ao MPLA. Ele era o responsável pela planejamento das ações tomadas
por sua equipe, bem como manter a ordem entre os membros e supervisionar o
suprimento de comida e armamento. Já João, conhecido como Comissário[16],
é um militante que estudou e foi doutrinado no comunismo. Sua função baseava-se
em ensinar os demais companheiros, tanto a lerem e escreverem, quanto as
diretrizes defendidas pelo socialismo. Extremamente visionário, agia dessa
forma por acreditar que, caso vencessem a guerra, os integrantes do MPLA
deteriam o poder político do país e seriam responsáveis por organizá-lo. Por
isso, deveriam ter estudo e cultura para que
pudessem transmiti-los para todo o restante do povo, evitando assim uma
nova era de exploração. Mesmo com todas as desavenças internas[17],
eram os dois membros mais respeitados e influentes do grupo. Porém, em ultima
instância, quem tinha a palavra final era Sem Medo.
Mesmo que tentasse ser democrático,
as atitudes tomadas por ele nem sempre eram unânimes. Sempre que não era de seu
agrado, o Comissário interpelava e expunha a sua opinião, as vezes até o
advertindo, como mostra o trecho a seguir:
“-
Não tens o direito de falar assim a um guerrilheiro, Comandante!
Sem
Medo amachucou o cigarro no chão. Sentou-se no catre. Os olhos faiscaram, ao
fixar o Comissário. Este levantou-se e avançou para o meio da casa. Sem Medo
olhava-o, o cenho carregado.
-
Não assisti ao que se passou – disse o Comissário – mas não são maneiras de se
falar a um guerrilheiro.
O
Comandante levantou-se por sua vez. Os combatentes ouviam atentamente,
adivinhando a tensão que se criara entre os dois. Os ruídos da mata tornaram-se
perceptíveis, ritmados pelo ruído do pé do Comandante martelando o solo.”
(PEPETELA, 1982, p. 104)
Apesar
de se discordarem em algumas ocasiões, a relação entre eles era de bastante
amizade. Como o Comandante era o mais velho de todo o grupo, diziam que ele
tratava a todos, principalmente o Comissário, como se fossem seus filhos. Por
essa razão, possuía a admiração da equipe por completo.
Assim
como na história de Dom Quixote, a dupla formada em Mayombe tem uma representação psicológica muito importante e
complexa, onde são possíveis duas leituras distintas. A primeira delas seria
considerar João como resultado de um processo de formação de um herói[18],
pois, desde o começo do romance, ele foi moldado por seu líder para que
futuramente assumisse seu lugar. Passou de jovem sentimental e idealista (ao
ponto de ser taxado de utópico) a um líder frio, capaz de tomar as melhores
decisões que o momento exigisse[19].
Em outras palavras, todas as situações que o dueto passou, colaboraram para
transmutar o Comissário num Comandante melhor, sem os defeitos que o antigo
portava.
Por outro viés, semelhantemente
como acontece no mito quixotesco, pode-se definir o Comissário Político como um
alter ego de Sem Medo, projetado numa outra figura. A diferença entre as duas
histórias é que, enquanto em Dom Quixote a dupla se mostra composta por
elementos de personalidades diferentes, que por vezes possuem opiniões
contrárias, elas se completam e juntas formam algo próximo a perfeição. Já na obra
africana, o par se faz pela união de personalidades conflitantes entre si,
devido o alto grau de oposição que há entre elas. O Comandante é uma pessoa
fria, calculista, que toma decisões mediante a situação que se apresentar. Não
liga para valores morais, tão menos religiosos. Adora a guerra e vê nela a
razão de sua existência. Já a personalidade do político é exatamente o oposto
do que apresenta Sem Medo; é por isso que precisa estar vinculada em outro ser
distinto, para que haja o embate entre elas e, consequentemente, aprendizado e
evolução, onde o ser que será contemplado com tais benefícios será João, pois,
no romance, ele é o herói em formação. Sobre esse aspecto, Francisco Portugal
faz o seguinte comentário:
“a
luta hegeliana[20]
pelo reconhecimento é o diálogo hostil entre o Eu com o Outro. Aceitarmos esse
pressuposto significa concordar com que toda a luta por se conhecer, por ser,
por existir, implica sempre uma dualidade, aquela que provém da consciência da
mesmidade e da alteridade, e que essa luta, ou esse diálogo, adopta
frequentemente os mecanismos de uma hostilidade. Daí a freqüência com que os
pares que reflectem a existência do duplo mantêm frequentemente a feição de um
confronto, de uma rivalidade que provém da estrutura da mediação que opõe o Um
ao Outro.” (PORTUGAL, 2001, p. 110)
Da
mesma forma que Mayombe se relaciona
com outros mitos até agora citados, pode-se dizer que semelhantemente acontece
com as características mitológicas provenientes da dupla Dom Quixote e Sancho
Pança, que podem ser encontradas na dupla de seus protagonistas e servir como
ponto de referência para uma leitura que preze por uma interpretação voltada a
fatores psicológicos.
Conclusão
Findado
o trabalho, constata-se, portanto, que é possível encontrar a presença de mitos
de origem européia presentes numa obra de literatura africana, bem como
relê-las e interpretá-las a partir de características primordiais neles
contidos, quer sejam datados da antiguidade, quer sejam provenientes da era
moderna. Conforme dito anteriormente, a escolha para essa averiguação foi Mayombe, pelo fato de ser um título clássico
da literatura africana, criado por um escritor extremamente valorizado e
reconhecido. Apesar de possuir uma escrita tipicamente européia e formal, pois,
mesmo nos diálogos o português é escrito na norma padrão, a obra é tipicamente
africana, pois valoriza e retrata a luta dos guerrilheiros do MPLA contra o
domínio colonial português, mostrando, ao mesmo tempo, costumes, tradições,
curiosidades e fatos históricos de Angola e países vizinhos.
É
evidente que a intenção de Pepetela ao escrever sua obra não foi fazer
referências, diretas ou indiretas, aos principais mitos do individualismo
moderno. Mas é inegável que os atributos que esses mitos possuem e que os
tornaram tão importantes dentro da literatura, servem como uma ferramenta que
auxilia a interpretação e análise da história, ao passo que são exemplos,
atitudes e características inerentes a todo ser humano, seja ele de qualquer
época e raça, porém, foram imortalizadas por eles.
Vale ressaltar também que esse
artigo possibilita e estimula a procura de mesmos aspectos mitológicos em
outras obras literárias, quer do mesmo autor, quanto em outros, quer sejam
escritas em língua portuguesa, como em outras. Assim, poder-se-á distinguir
melhor o alcance de mitos do individualismo moderno europeus em outro
continente, bem como a sua influência e adaptação em culturas totalmente distintas
da européia e americana.
Referências
Bibliográficas
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BECHARA, Evanildo. Minidicionário da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 2009.
CARVALHAL, Tânia Franco. Literatura
Comparada. São Paulo: Ática, 2006.
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São Paulo: Editora 34, 2007.
______. O
Engenhoso Fidalgo D. Quixote de La Mancha. Trad. Sérgio Molina. São Paulo:
Editora 34, 2002.
ELIADE, Mircea. Mito
e Realidade. Trad. Pola Civelli. São Paulo: Perspectiva, 2002.
ÉSQUILO. Prometeu
Acorrentado. São Paulo: Editora Escala Educacional, 2001.
GOETHE, Johann Wolfgang Von. Fausto: Uma Tragédia – Primeira Parte. Brasília: Editora 34 Ltda,
2011.
MOLINA, de Tirso. O Burlador de Sevilha e o Convidado de Pedra. Brasília: Círculo de
Brasília Editora, 2004.
PEPETELA. Mayombe.
São Paulo: Ática, 1982.
PORTUGAL, Francisco Salinas. A Máscara do Sagrado: Uma Leitura Mitocrítica de Mayombe. Lisboa: Imprensa
Nacional – Casa da Moeda, 2001.
WATT, Ian. Parte I: Três mitos do Renascimento. In:
______. Mitos do Individualismo Moderno: Fausto, Don Quixote, Don Juan,
Robinson Crusoe. Tradução de Mário Pontes. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997.
[1] “Diz-se de gênero literário e
cinematográfico que mostra fatos irreais e fantásticos como se fossem comuns e
cotidianos.” (BECHARA, 2009, p. 398)
[2] Vale ressaltar o povo egípcio e
a sua escrita em hieroglífica.
[3] Escritor angolano, de
ascendência portuguesa, nascido em 29 de outubro de 1941. É conhecido com o
pseudônimo de Pepetela.
[4] Movimento de Libertação Popular
de Angola. Foi um movimento que lutou pela a independência do país do domínio
colonial português. Passou a ser um partido político após a Guerra da
Independência de 1961-74.
[5] Proveniente da mitologia grega, Prometeu é um titã, filho de Jápeto. Protetor dos humanos, usou de sua astúcia para roubar o fogo de Zeus e dar a eles. Sua punição por isso foi ter sido amarrado a uma rocha onde, diariamente, uma grande águia comia seu fígado.
[6] Protagonistas, respectivamente
das obras Fausto- Uma Tragédia, de
Goethe, O Engenhoso Fidalgo Dom Quixote
de La Mancha, de Miguel de Cervantes e O
Burlador de Sevilha e o Convidado de Pedra, de Tirso de Molina.
[7] Nascido aproximadamente entre os
anos 525 a.C a 455 a.C na Grécia antiga,
foi um dos mais importantes dramaturgos de toda a história, sendo considerado
por muitos como o pai da tragédia.
[8]
Fausto- Uma Tragédia, de
Johann Wolfgang von Goethe, não é a obra matriz sobre o mito faústico, mas foi
a que o solidificou. A versão mais antiga desse mito é chamada de Faustbuch, datada de 1587.
[9] Obra matriz publicada em 1630, responsável por imortalizar o mito donjuanesco.
[10] Conforme mostram os versos 1975
e 1976, onde Don Juan diz: “ A burla mais escolhida / de todas há de ser esta.”
[11] Das quatro mulheres que Don Juan burla na obra, três estão, de certa forma, compromissadas com alguém. O artifício mais utilizado pelo burlador era a promessa de casamento, que consequentemente resultaria em ascensão social à vítima.
[12] Filósofo alemão nascido em 5 de maio de 1818 e falecido em 14 de março de 1883. É considerado o maior pensador de toda a história, pois suas ideias abrangem diversas áreas, especialmente a economia, sociologia e política. A ele é atribuído a criação da doutrina comunista moderna.
[13] Miguel de Cervantes Saavedra foi um poeta, dramaturgo e romancista castelhano, nascido em 29 de setembro de 1547 e falecido em 22 de abril de 1616. Sua maior obra é Dom Quixote, que é considerado por muitos críticos literários como o maior romance de toda a história.
[14] Conforme lia nos livros de
cavalaria, Dom Quixote alegava ser comum que os cavaleiros andantes ganhassem
concessões de terra dos reis aos quais
prestavam serviços. Convenceu Sancho prometendo que este governaria uma ilha
que porventura viesse a receber como paga.
[15] Na Literatura, tem-se como a
representação de outra personalidade de uma mesma pessoa.
[16] Era usual entre os membros do MPLA se tratarem por apelido, que era dado assim que entrassem para o grupo. Dentre todos os personagens integrantes do grupo de Sem Medo, apenas o Comissário tem o seu nome real conhecido.
[17] Os membros do grupo provinham de
diferentes tribos, que eram rivais entre si. Muitos deles transportavam essa
rivalidade para dentro do movimento.
[18] Conhecido também como “processo de iniciação”, em literatura significa a ascensão para uma esfera superior de existência.
[19] Esse momento se faz no final do
romance, após a morte de Sem Medo.
[20]
Referente aos estudos do filósofo Georg Friedrich Hegel.
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