A Presença de Mitos do Individualismo Moderno Europeu Presentes na Literatura Africana, Representada Pela Obra "Mayombe", de Pepetela



A PRESENÇA DE MITOS DO INDIVIDUALISMO MODERNO EUROPEU PRESENTES NA LITERATURA AFRICANA, REPRESENTADA PELA OBRA MAYOMBE, DE PEPETELA.


Introdução

            Uma das maiores virtudes que a literatura africana possui é estar associada ao fantástico[1] e conter inúmeros elementos mitológicos que exprimem a alma e a cultura de seu povo. Tais características se devem ao fato de que, dentre todas as literaturas do mundo, é sem dúvida nenhuma a que mais sofre influência da oralidade, tendo em vista que a maioria da população original da África é de origem indígena e constituída por tribos, onde a tradição da escrita é praticamente nula[2].
            Apesar de ser bastante recente, pois suas primeiras obras datam a partir do início do século XX após a chegada da imprensa no continente, e também ser escrita geralmente em língua européia, proveniente do país colonizador, possui identidade e características próprias, pois, tanto na poesia quanto na prosa, tende a narrar, sob o ponto de vista africano, os diversos problemas enfrentados por seus povos, tais como o tráfico de escravos, o domínio e exploração dos países europeus, as guerras civis, a luta por independência, entre outros. Porém, mesmo sendo por si só tão rica e original, é quase inevitável de se encontrar nela referências tanto explícitas quanto implícitas a mitos europeus, seja da antiguidade ou da modernidade.
            Tal afirmação é evidenciada em Mayombe, romance escrito em língua portuguesa, um dos idiomas de Angola, país de origem de seu autor, Artur Carlos Maurício Pestana dos Santos[3], conhecido pelo pseudônimo de Pepetela. Este livro retrata a luta de guerrilheiros do MPLA[4], comparando Sem Medo, seu protagonista, a Ogun, que é o representante africano da figura mitológica grega de Prometeu[5]. Por vezes, suas atitudes e personalidade assemelham-se e muito a mitos do individualismo moderno, tais como Fausto, Dom Quixote e Don Juan[6]. A referida obra será analisada com o intuito de identificar todos eles.


Objetivos

            O presente artigo tem por objetivo identificar a presença de mitos do individualismo moderno europeu numa obra de literatura africana, sendo escolhida para tal Mayombe, de Pepetela, clássico literário angolano. Com isso, será possível observar o quanto figuras mitológicas modernas como Fausto, Dom Juan e Dom Quixote, por exemplo, têm suas características e atitudes, que lhe conferiram o status de mito, evidenciados em personagens de literaturas provindas de outros continentes, com culturas extremante diferentes, contextualizados em épocas distintas.


Mayombe e o Mito de Prometeu

Quantos há que sabem onde se encontra esse caminho de areia no meio da areia? Existem, no entanto, e eu sou um deles. Sem Medo também o sabia. Mas insistia em que era um caminho no deserto. Por isso se ria dos que diziam que era um trilho cortando, nítido, o verde do Mayombe. Hoje sei que não há trilhos amarelos no meio do verde. Tal é o destino de Ogun, o Prometeu africano. (PEPETELA, 1982, p. 268)

Mayombe é explicitamente uma alusão à tragédia clássica Prometeu Acorrentado, de Ésquilo[7]. As situações vivenciadas por Sem Medo, herói de Pepetela, bem como seu destino e personalidade, assemelham-se a figura mítica de Ogun, da cultura ioruba, que por sua vez é comparado na obra a Prometeu, um titã da mitologia grega.
A comparação entre mitos de culturas tão distintas e posteriormente a associação ao protagonista do romance aqui analisado é possível devido ao fato de que todos os citados passam pela mesma sequência narrativa, conforme a afirmação de Francisco Salinas Portugal:

Com efeito, o autor parece utilizar a referência mítica à história clássica de Prometeu, à qual dá uma feição africana com a equivalência Ogun/Prometeu, para sublinhar o carácter heróico, quase diríamos épico, dos factos narrados. A funcionalidade, portanto, da referência mítica não iria além do seu valor como tropo e em conseqüência, do nosso ponto de vista, estaríamos diante de uma semiologização do mito. (PORTUGAL, 2001, p. 59)

Pode-se dividir a referida sequência em três partes:

- Transgressão: A figura mitológica comete um grande erro, porém, com boas intenções.
Com Prometeu, a transgressão se dá no momento em que ele rouba o fogo para entregar aos homens. Em Ogun, acontece quando ele, mesmo proibido de beber vinho, o faz. Embriagado, molda seres humanos defeituosos, tortos, corcundas, albinos, pois não eram cozidos adequadamente. Já com Sem Medo, esse momento se configura quando ele e os demais guerrilheiros do MPLA adentram o território da floresta Mayombe para lutar contra o regime colonial português.

- Punição: Uma entidade superior ao mito o castiga pela falta que cometeu.
Em Prometeu Acorrentado, Zeus amarra o titã numa rocha e envia uma águia para que ela devore seu fígado diariamente, pois ele se regenerava. A punição sofrida pelo mito ioruba foi ter sido engolido pela terra, parando em seus “intestinos” e lá ficando aprisionado. Por sua vez, Sem Medo e seus subordinados, confinados na imensidão da floresta e caçados pelos militares portugueses, passaram por diversos problemas de relacionamento, como traição, preconceitos étnicos, insubordinação e desavenças, além de muita fome e cansaço.  

- Reconciliação: Principal parte entre as três, pois confere à figura o valor de mito. Acontece quando há um amadurecimento deste ser, transformando-o em algo melhor.
            Com Prometeu essa etapa dá-se quando ele é liberto por Heracles e compra a imortalidade do Centauro Quirão. Encarcerado na terra, Ogun adquiriu sabedoria e conhecimento, sendo posteriormente possível a ele reconciliar os homens com os deuses. Já Sem Medo, ao morrer no final da história, serviu de exemplo aos seus comandados, fazendo com que entendessem o real motivo da causa por qual lutavam.
“... o significado último do mito prometeico é o da luta constante o homem para atingir o ideal de verdade, é um caminho, uma viagem cheia de trabalhos, de sofrimento, de solidão (uma iniciação) em que, só no fim desse percurso (e precisar-se-á para isso a coragem do herói), atingirá o ideal da perfeição.” (PORTUGAL, 2001, p. 58)

            Portanto, é válido afirmar que Mayombe conta de forma moderna e “africanizada” o mito de Prometeu, transportando-o para a realidade angolana, ao passo que o contextualiza com um importante momento cultural vivenciado por seu povo. Entretanto, mesmo sendo uma referência direta a um mito da antiguidade clássica, a personalidade e atitudes de seus personagens remetem a mitos do individualismo moderno, conforme se verá a seguir.


Sem Medo e Fausto: A Busca Pelo Conhecimento e Poder

         “Ai de mim! Da filosofia,
            Medicina, jurisprudência,
            E, mísero eu! Da teologia,
            O estudo fiz, com máxima insistência.
            Pobre simplório, aqui estou
            E sábio como dantes sou!
            De doutor tenho o nome e mestre em artes,
            E levo por dez anos por estas partes,
            Pra cá e lá, aqui ou acolá
            Os meus discípulos pelo nariz.
            E vejo-o, não sabemos nada!” (Goethe, 2011, pp. 58-59)

            O mito fáustico, solidificado e imortalizado na peça teatral do escritor e filósofo alemão Goethe[8], tem início quando Fausto, personagem principal, tenta cometer suicídio, pois se considerava um fracassado por não ter obtido o conhecimento ilimitado, mesmo que para isso tivesse estudado todas as ciências possíveis e até utilizado magia, algo passível de punição severa. Aproveitando-se desse momento, o demônio Mefistófeles manifesta-se para ele e lhe propõe um acordo, assinado com sangue, cujo tratado é conceder todos os desejos ao contratante em troca de sua alma, pois, quando morrer, servirá o contratado no inferno. E assim começa a queda de Fausto e a firmação de seu mito.
            A sede por conhecimento do personagem de Pepetela é demasiadamente parecida com a de Fausto. Sem Medo entrou para o seminário ainda menino com o objetivo primário de obter cultura para posteriormente ascender socialmente. Obviamente, obteve uma rígida formação católica, porém, era rebelde a diversos conceitos que lhe eram ensinados, pois seus mestres agiam exatamente da forma contrária do que professavam. Assim como o protagonista de Goethe buscou encontrar as respostas para seus anseios aprendendo e utilizando feitiçaria, algo extremamente proibido, o herói angolano procurou naquilo que os padres diziam ser pecado: o prazer sexual.

“Isso levou-me a desejar o que os horrorizava, a querer conhecer o que eles temiam, a procurar o que eles nos proibiam de ouvir ou sentir. Foi com misto de terror sagrado, de prazer carnal e de prazer de vingança que tive a primeira mulher. Em pleno seminário, num anexo; era uma criada que aliviava os seminaristas e, quem sabe, alguns padres.” (PEPETELA, 1982, p. 36)

Sua rebeldia tornou-se visível. Acabou por ser expulso do seminário após ter ameaçado bater em um padre. Aqui configura o descenso de Sem Medo. Foi a partir desse momento que ele, mesmo sentindo-se impuro por tanta transgressão que havia cometido contra a religião que lhe fora ensinada, preferiu esquecer todos esses valores que havia adquirido ao longo de sua juventude e partiu para a Europa, onde estudou e aprendeu o comunismo, que mais tarde acarretaria em sua entrada para o MPLA e posteriormente  por todos os problemas que passaria, culminando por fim em sua morte.

“... tornou-se intolerável o medo do Inferno, senti-me danado, perseguido por mil crimes e por todos os prazeres ignóbeis que praticara. A certeza de que estava perdido foi tão grande que decidi que o Inferno não existia, não podia existir, senão eu estaria condenado. Ou negava, matava o que me perseguia, ou endoidecia de medo. Matei Deus, matei o Inferno e matei o medo do Inferno.” (PEPETELA, 1982, pp. 36-37)

            Provavelmente, a intenção do autor de Mayombe não foi fazer uma referência direta à obra Fausto: Uma Tragédia. Porém, comparar as obras e realizar uma leitura por este ponto de vista é perfeitamente cabível.
Em ambas as obras têm-se a sabedoria e o conhecimento relacionados ao sagrado, divino. Entretanto, há um limite máximo para essas virtudes, delimitado por valores sociais, religiosos e morais. Para superá-los, é preciso romper essas barreiras e praticar o que teoricamente seria considerado “errado” pela sociedade. Tanto Sem Medo, quanto Fausto, optaram por esse tipo de transgressão no afã de satisfazerem seus desejos, e foi exatamente isso que ocasionou a série de acontecimentos que constituíram tragédias em suas respectivas vidas.


Sem Medo e Don Juan: Burla e Oposição Aos Valores Cristãos

Don Juan: Mas se burlar
                     é já meu hábito antigo
                    por que perguntas, sabendo
                    minha condição?
...

Cagarolão: Os que fingis e enganais
                     as mulheres, dessa sorte
                     o pagareis com a morte.
Dom Juan:  Que tanto que me fiais!
                    Cagarolão com razão te chamam.
Cagarolão: Teus pareceres
                    segue, que em burlar mulheres
                    quero ser Cagarolão...” (MOLINA, 2004, p. 119)


Um dos traços mais marcantes da personalidade de Don Juan Tenório, personagem principal da peça O Burlador de Sevilha e o Convidado de Pedra[9], de Tirso de Molina, era o prazer que ele tinha em aplicar burlas em mulheres, enganando-as para que pudesse se relacionar sexualmente com elas. Mesmo que cristão, o jovem fidalgo agia dessa forma porque era contra os preceitos e valores morais e religiosos da época, tais como o casamento e o amor cortês. No decorrer da peça, ele engana quatro mulheres, sendo a última delas Aminta, uma camponesa recém-casada. Para Don Juan, foi a mais perfeita burla que aplicou[10], pois conseguiu desonrar socialmente o casal, destruindo o sagrado laço matrimonial que havia entre eles.
            Segundo Ian Watt:

“Não parece haver dúvida de que, para cada cem pessoas que secretamente desrespeitam as leis da Igreja, do Estado e da família, há somente uma capaz de proclamar mais ou menos abertamente sua oposição a tais leis. Sob esse aspecto, Don Juan é profundamente representativo: para ele, mentir não tem a menor importância; ele quer o que quer, e empenhado unicamente na satisfação dos próprios desejos, não vê problema em conflitar-se com o mundo e suas leis.” (WATT, 1997, p. 110)

            Vale mencionar também que Juan agia como lhe aprovava porque valia-se de sua condição social, extremamente privilegiada. Além de ser um fidalgo, conforme já foi citado, seu tio, Don Pedro, era o homem de confiança do rei e poderia, facilmente, interceder em seu favor. Assim sendo, o burlador não tinha medo nenhum de ser punido pelos crimes que cometia. E isso lhe motivava ainda mais a praticá-los.
            Outro aspecto relevante que mostra o quanto Don Juan era contrário aos princípios cristãos fica evidenciado na forma com que utilizava se da promessa de casamento para conseguir enganar suas vítimas, bem como o enorme medo que tinha em cumpri-las, pois, na maior parte da peça, passa fugindo para que não fosse obrigado a se casar com as mulheres que havia enganado. Seria normal, e até desejoso, que os jovens da época a qual a obra é ambientada contraíssem matrimônio. Porém, suas atitudes mostram o quanto de repúdio ele tinha para com essa prática, tanto em se negar a fazê-la quanto no prazer em comprometer a união de casais[11].
            Sem Medo também era contrário a muitos valores cristãos. Mesmo que suas atitudes, bem ao contrário do protagonista de Tirso de Molina, não fossem desonrosas e não visassem desmoralizar pessoas, por diversas vezes no texto ele reclama com os companheiros, e algumas vezes consigo próprio, quando agia e pensava sob o ponto de vista cristão, pois sabia que esses valores estavam enraizados dentro dele, mesmo que não quisesse.  

“- Não creio. A Direção verá. Mas estes casos, no Movimento, implicam sempre um castigo. Nem que seja uma suspensão.
- Sim, a eterna moral cristã! – disse Sem Medo.
- Moral revolucionária, camarada.
- Deixa-te disso! Moral  revolucionária, nada. Seria moral revolucionária se todos os casos fossem sancionados ou nenhum fosse. Há uma série de casos similares que se passam, toda a gente sabe, e não se faz nada. Só quando provoca escândalo é que o Movimento se mete. Isso é moral cristã, que se interessa pelas aparências.” (PEPETELA, 1982, p. 170)

            Devido sua educação ter-se dado dentro de um seminário, o protagonista de Mayombe foi doutrinado nos ensinamentos católicos desde muito jovem. Conforme aqui já citado, passou a generalizá-los como falsos quando percebeu que aqueles que os ensinavam não agiam conforme pregavam. Com isso, passou a odiar a religião, pois considerava-a um instrumento a mais de controle que os mais fortes utilizavam para dominar os mais fracos.
            Segundo ele, o socialismo era a filosofia ideal a ser adotada, pois era a chave fundamental para concretizar a liberdade do povo angolano do domínio português. Admitia que muita coisa defendida por esses sistema era utópica, mas que mesmo assim, dentre todos os outros, era o que mais se aproximava da verdade, conforme mostra o seguinte trecho:

“Por que a afirmação dum homem tem de se fazer sempre em oposição a todos os outros? – pensou Sem Medo. Por que sempre a luta pela vida, a luta pelo lugar, ou a luta pelo prestígio? Tal é o pecado original, não de que fala a Igreja, mas de que fala Marx[12].” (PEPETELA, 1982, p. 198)

            Além de considerar a doutrina cristã enganosa, Sem Medo passou a associá-la à fraqueza humana. No decorrer da obra, em vários momentos adverte seus comandados quando estes querem agir precipitadamente ou, mesmo debilitados e sem condição de batalhar, queriam prosseguir a todo custo, por pura demonstração de bravura. Para ele, tais ações denotavam a mentalidade fraca de um religioso, que ao invés de agir pela razão, age pela emoção, enganando-se até mesmo quando a derrota é certa. Com isso, entregam-se a uma morte inútil, enfraquecendo o movimento e deixando a vitória cada vez mais difícil de ser alcançada.
            Mesmo que moralmente bastante distintos, Don Juan e Sem Medo, não só por seus discursos, mas principalmente pela clareza de suas atitudes, evidenciam o desprezo que possuem pela religião cristã e seus princípios, e podem perfeitamente serem comparados sob esse aspecto, pois, apesar do fator marcante no mito donjuanesco ser a questão da bula e a sedução, (o que não ocorre com o personagem africano) o que faz com que o burlador de Sevilha aja da seguinte forma é exatamente o ódio que ele ostenta contra os valores morais e religiosos da época. Tal qual é o foco responsável por moldar a personalidade do guerrilheiro líder de Mayombe e desencadear as escolhas que ele teve em sua jornada.


As Duplas em Mayombe e O Engenhoso Fidalgo Dom Quixote de La Mancha

“- Como posso me enganar no que digo, traidor escrupuloso? – disse D. Quixote. – Dize-me, não vês aquele cavaleiro que a nós vem, sobre um cavalo rosilho rodado, que traz na cabeça um elmo de ouro?
- O que eu vejo e lobrigo – respondeu Sancho. – é só um homem montado num asno pardo, como o meu, que traz na cabeça uma coisa que brilha.” (CERVANTES SAAVEDRA, 2002, p. 276)

            Um das principais características que marcam o mito quixotesco e o tornam tão especial é a presença da dupla formada entre o cavaleiro e Sancho Pança. No mundo todo a imagem de D. Quixote é sempre concebida ao lado de seu fiel escudeiro, sendo praticamente impossível desassociá-los.
É somente no começo da história, narrada respectivamente em O Engenhoso Fidalgo Dom Quixote de La Mancha e O Engenhoso Cavaleiro Dom Quixote de La Mancha, ambos de Miguel de Cervantes[13], que o destemido fidalgo sai sozinho em busca de aventuras cavaleirescas. Quanto terminou sua primeira jornada, formulou em sua mente insana que suas ações não haviam sido vitoriosas porque lhe faltava algo necessário a todos os cavaleiros andantes: um escudeiro. Foi então que chamou Sancho Pança, um pobre lavrador que morava pela vizinhança, para lhe prestar serviços e fazer companhia, prometendo-lhe uma ilha para que pudesse governar[14]. Assim a dupla foi formada e juntos vivenciaram diversas aventuras, na maioria das vezes cômicas.
            Psicologicamente, a união desses dois personagens é de fundamental relevância para o romance, pois, sozinhos, são imperfeitos; juntos, completam-se e suprem a falta onde há deficiência no outro. Devido a sua loucura, o fidalgo é valente, visionário e otimista, acreditando que tudo o que lhe acontece colabora para o seu bem e glória. Possui estudo e um bom nível de intelectualidade, graças às diversas leituras realizadas ao longo de sua vida. Sancho, por sua vez, ao contrário de senhor, coloca os bens materiais acima de tudo. Longe de ser valente, procura agir pela razão e simplicidade. Não possui conhecimento acadêmico, mas, por diversas vezes, mostrou-se mais sábio do que o cavaleiro.
            Sobre as disparidades entre as personalidade de Dom Quixote e Sancho Pança, Ian Watt faz o seguinte comentário:

“No plano psicológico, Quixote e Sancho representam as polaridades do espírito e da carne, cérebro e estômago, céu e terra, sonho e realidade, passado e presente, literatura e vida; na esfera social, evidencia-se a dicotomia de cavaleiro e camponês, do herói autoproclamado em face do covarde confesso, de introvertido e extrovertido, de solitário e de gregário, de solteirão e homem casado.” (WATT, 1997, p. 85)

            Assim sendo,  pode-se afirmar, sem dúvida nenhuma, que Pança é a representação do alter ego[15]de Quixote, e vice-versa.  Mesmo sendo a personalidade “dominante”, o nobre admite em vários momentos no texto que o camponês tem razão em determinadas situações e isso lhe serve de auxílio para frear seus impulsos, resultantes de sua mente perturbada. A relação entre os protagonistas de Mayombe acontece de uma forma muito semelhante.
            Sem Medo, também chamado de Comandante, é o líder de um grupo de guerrilheiros pertencentes ao MPLA. Ele era o responsável pela planejamento das ações tomadas por sua equipe, bem como manter a ordem entre os membros e supervisionar o suprimento de comida e armamento. Já João, conhecido como Comissário[16], é um militante que estudou e foi doutrinado no comunismo. Sua função baseava-se em ensinar os demais companheiros, tanto a lerem e escreverem, quanto as diretrizes defendidas pelo socialismo. Extremamente visionário, agia dessa forma por acreditar que, caso vencessem a guerra, os integrantes do MPLA deteriam o poder político do país e seriam responsáveis por organizá-lo. Por isso, deveriam ter estudo e cultura para que  pudessem transmiti-los para todo o restante do povo, evitando assim uma nova era de exploração. Mesmo com todas as desavenças internas[17], eram os dois membros mais respeitados e influentes do grupo. Porém, em ultima instância, quem tinha a palavra final era Sem Medo.
Mesmo que tentasse ser democrático, as atitudes tomadas por ele nem sempre eram unânimes. Sempre que não era de seu agrado, o Comissário interpelava e expunha a sua opinião, as vezes até o advertindo, como mostra o trecho a seguir:

“- Não tens o direito de falar assim a um guerrilheiro, Comandante!
Sem Medo amachucou o cigarro no chão. Sentou-se no catre. Os olhos faiscaram, ao fixar o Comissário. Este levantou-se e avançou para o meio da casa. Sem Medo olhava-o, o cenho carregado.
- Não assisti ao que se passou – disse o Comissário – mas não são maneiras de se falar a um guerrilheiro.
O Comandante levantou-se por sua vez. Os combatentes ouviam atentamente, adivinhando a tensão que se criara entre os dois. Os ruídos da mata tornaram-se perceptíveis, ritmados pelo ruído do pé do Comandante martelando o solo.” (PEPETELA, 1982, p. 104)

            Apesar de se discordarem em algumas ocasiões, a relação entre eles era de bastante amizade. Como o Comandante era o mais velho de todo o grupo, diziam que ele tratava a todos, principalmente o Comissário, como se fossem seus filhos. Por essa razão, possuía a admiração da equipe por completo.
            Assim como na história de Dom Quixote, a dupla formada em Mayombe tem uma representação psicológica muito importante e complexa, onde são possíveis duas leituras distintas. A primeira delas seria considerar João como resultado de um processo de formação de um herói[18], pois, desde o começo do romance, ele foi moldado por seu líder para que futuramente assumisse seu lugar. Passou de jovem sentimental e idealista (ao ponto de ser taxado de utópico) a um líder frio, capaz de tomar as melhores decisões que o momento exigisse[19]. Em outras palavras, todas as situações que o dueto passou, colaboraram para transmutar o Comissário num Comandante melhor, sem os defeitos que o antigo portava.
Por outro viés, semelhantemente como acontece no mito quixotesco, pode-se definir o Comissário Político como um alter ego de Sem Medo, projetado numa outra figura. A diferença entre as duas histórias é que, enquanto em Dom Quixote a dupla se mostra composta por elementos de personalidades diferentes, que por vezes possuem opiniões contrárias, elas se completam e juntas formam algo próximo a perfeição. Já na obra africana, o par se faz pela união de personalidades conflitantes entre si, devido o alto grau de oposição que há entre elas. O Comandante é uma pessoa fria, calculista, que toma decisões mediante a situação que se apresentar. Não liga para valores morais, tão menos religiosos. Adora a guerra e vê nela a razão de sua existência. Já a personalidade do político é exatamente o oposto do que apresenta Sem Medo; é por isso que precisa estar vinculada em outro ser distinto, para que haja o embate entre elas e, consequentemente, aprendizado e evolução, onde o ser que será contemplado com tais benefícios será João, pois, no romance, ele é o herói em formação. Sobre esse aspecto, Francisco Portugal faz o seguinte comentário:

“a luta hegeliana[20] pelo reconhecimento é o diálogo hostil entre o Eu com o Outro. Aceitarmos esse pressuposto significa concordar com que toda a luta por se conhecer, por ser, por existir, implica sempre uma dualidade, aquela que provém da consciência da mesmidade e da alteridade, e que essa luta, ou esse diálogo, adopta frequentemente os mecanismos de uma hostilidade. Daí a freqüência com que os pares que reflectem a existência do duplo mantêm frequentemente a feição de um confronto, de uma rivalidade que provém da estrutura da mediação que opõe o Um ao Outro.” (PORTUGAL, 2001, p. 110)

            Da mesma forma que Mayombe se relaciona com outros mitos até agora citados, pode-se dizer que semelhantemente acontece com as características mitológicas provenientes da dupla Dom Quixote e Sancho Pança, que podem ser encontradas na dupla de seus protagonistas e servir como ponto de referência para uma leitura que preze por uma interpretação voltada a fatores psicológicos.


Conclusão

            Findado o trabalho, constata-se, portanto, que é possível encontrar a presença de mitos de origem européia presentes numa obra de literatura africana, bem como relê-las e interpretá-las a partir de características primordiais neles contidos, quer sejam datados da antiguidade, quer sejam provenientes da era moderna. Conforme dito anteriormente, a escolha para essa averiguação foi Mayombe, pelo fato de ser um título clássico da literatura africana, criado por um escritor extremamente valorizado e reconhecido. Apesar de possuir uma escrita tipicamente européia e formal, pois, mesmo nos diálogos o português é escrito na norma padrão, a obra é tipicamente africana, pois valoriza e retrata a luta dos guerrilheiros do MPLA contra o domínio colonial português, mostrando, ao mesmo tempo, costumes, tradições, curiosidades e fatos históricos de Angola e países vizinhos.
            É evidente que a intenção de Pepetela ao escrever sua obra não foi fazer referências, diretas ou indiretas, aos principais mitos do individualismo moderno. Mas é inegável que os atributos que esses mitos possuem e que os tornaram tão importantes dentro da literatura, servem como uma ferramenta que auxilia a interpretação e análise da história, ao passo que são exemplos, atitudes e características inerentes a todo ser humano, seja ele de qualquer época e raça, porém, foram imortalizadas por eles.
Vale ressaltar também que esse artigo possibilita e estimula a procura de mesmos aspectos mitológicos em outras obras literárias, quer do mesmo autor, quanto em outros, quer sejam escritas em língua portuguesa, como em outras. Assim, poder-se-á distinguir melhor o alcance de mitos do individualismo moderno europeus em outro continente, bem como a sua influência e adaptação em culturas totalmente distintas da européia e americana.





Referências Bibliográficas

ANDRADE, Fernando Costa. Literatura Angolana – Opiniões. São Paulo: Edições 70, 1980.

BECHARA, Evanildo. Minidicionário da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2009.

CARVALHAL, Tânia Franco. Literatura Comparada. São Paulo: Ática, 2006.

CERVANTES SAAVEDRA, Miguel de. O Engenhoso Cavaleiro D. Quixote de La Mancha. Trad. Sérgio Molina. São Paulo: Editora 34, 2007.

______. O Engenhoso Fidalgo D. Quixote de La Mancha. Trad. Sérgio Molina. São Paulo: Editora 34, 2002.

ELIADE, Mircea. Mito e Realidade. Trad. Pola Civelli. São Paulo: Perspectiva, 2002.

ÉSQUILO. Prometeu Acorrentado. São Paulo: Editora Escala Educacional, 2001.

GOETHE, Johann Wolfgang Von. Fausto: Uma Tragédia – Primeira Parte. Brasília: Editora 34 Ltda, 2011.

MOLINA, de Tirso. O Burlador de Sevilha e o Convidado de Pedra. Brasília: Círculo de Brasília Editora, 2004.

PEPETELA. Mayombe. São Paulo: Ática, 1982.

PORTUGAL, Francisco Salinas. A Máscara do Sagrado: Uma Leitura Mitocrítica de Mayombe. Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 2001.

WATT, Ian. Parte I: Três mitos do Renascimento. In: ______. Mitos do Individualismo Moderno: Fausto, Don Quixote, Don Juan, Robinson Crusoe. Tradução de Mário Pontes. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997.


[1] “Diz-se de gênero literário e cinematográfico que mostra fatos irreais e fantásticos como se fossem comuns e cotidianos.” (BECHARA, 2009, p. 398)

[2] Vale ressaltar o povo egípcio e a sua escrita em hieroglífica.

[3] Escritor angolano, de ascendência portuguesa, nascido em 29 de outubro de 1941. É conhecido com o pseudônimo de Pepetela.

[4] Movimento de Libertação Popular de Angola. Foi um movimento que lutou pela a independência do país do domínio colonial português. Passou a ser um partido político após a Guerra da Independência de 1961-74.

[5] Proveniente da mitologia grega, Prometeu é um titã, filho de Jápeto. Protetor dos humanos, usou de sua astúcia para roubar o fogo de Zeus e dar a eles. Sua punição por isso foi ter sido amarrado a uma rocha onde, diariamente, uma grande águia comia seu fígado.

[6] Protagonistas, respectivamente das obras Fausto- Uma Tragédia, de Goethe, O Engenhoso Fidalgo Dom Quixote de La Mancha, de Miguel de Cervantes e O Burlador de Sevilha e o Convidado de Pedra, de Tirso de Molina.

[7] Nascido aproximadamente entre os anos  525 a.C a 455 a.C na Grécia antiga, foi um dos mais importantes dramaturgos de toda a história, sendo considerado por muitos como o pai da tragédia.

[8]  Fausto- Uma Tragédia, de Johann Wolfgang von Goethe, não é a obra matriz sobre o mito faústico, mas foi a que o solidificou. A versão mais antiga desse mito é chamada de Faustbuch, datada de 1587.

[9] Obra matriz publicada em 1630, responsável por imortalizar o mito donjuanesco.

[10] Conforme mostram os versos 1975 e 1976, onde Don Juan diz: “ A burla mais escolhida / de todas há de ser esta.”

[11] Das quatro mulheres que Don Juan burla na obra, três estão, de certa forma, compromissadas com alguém. O artifício mais utilizado pelo burlador era a promessa de casamento, que consequentemente resultaria em ascensão social à vítima.

[12] Filósofo alemão nascido em 5 de maio de 1818 e falecido em 14 de março de 1883. É considerado o maior pensador de toda a história, pois suas ideias abrangem diversas áreas, especialmente a economia, sociologia e política. A ele é atribuído a criação da doutrina comunista moderna.

[13] Miguel de Cervantes Saavedra foi um poeta, dramaturgo e romancista castelhano, nascido em 29 de setembro de  1547 e falecido em 22 de abril de 1616. Sua maior obra é Dom Quixote, que é considerado por muitos críticos literários como o maior romance de toda a história.

[14] Conforme lia nos livros de cavalaria, Dom Quixote alegava ser comum que os cavaleiros andantes ganhassem concessões  de terra dos reis aos quais prestavam serviços. Convenceu Sancho prometendo que este governaria uma ilha que porventura viesse a receber como paga.

[15] Na Literatura, tem-se como a representação de outra personalidade de uma mesma pessoa.

[16] Era usual entre os membros do MPLA se tratarem por apelido, que era dado assim que entrassem para o grupo. Dentre todos os personagens integrantes do grupo de Sem Medo, apenas o Comissário tem o seu nome real conhecido.

[17] Os membros do grupo provinham de diferentes tribos, que eram rivais entre si. Muitos deles transportavam essa rivalidade para dentro do movimento.

[18] Conhecido também como “processo de iniciação”, em literatura significa a ascensão  para uma esfera superior de existência.

[19] Esse momento se faz no final do romance, após a morte de Sem Medo.

[20] Referente aos estudos do filósofo Georg Friedrich Hegel.

Nenhum comentário:

Postar um comentário