O Ser Em Pedaços: Frankenstein e Jacinto de Tormes


O SER FRAGMENTADO: INFLUÊNCIA SOCIAL

Grande é a gama de estudos e pesquisas realizadas pela Filosofia, Sociologia, entre outras ciências, para tentar compreender e resolver a máxima polêmica que diz que diversos fatores do comportamento humano são resultados de influência social. Filósofos, em todas as épocas, provindos de diferentes escolas e movimentos, formularam diversificadas hipóteses que respondem essa questão sobre vários aspectos, inserida em diferentes contextos.
São considerados pensadores de grande destaque no tocante esta questão: Friedrich Nietzsche, Mikail Bakhtin e Roland Barthes. Não menores em expressão, tem-se Michael Foucault com sua teoria do Desconstrutivismo do Sujeito e Serge Moscovici com seu estudo denominado de “As Três Modalidades de Influência Social”.
          Como base científica para elucidar esse trabalho, usar-se-á as teorias desses dois últimos pensadores, pois elas responderão a proposta da pesquisa abordando os fatores de influência do meio externo e também sobre o olhar psicológico, que compõem os fatores internos.


CONTEXTO HISTÓRICO DAS OBRAS

          Um dos fatores mais considerados à compreensão de uma obra literária é entender o momento histórico vivenciado por seu respectivo autor e do espaço onde se ambienta a narração para que se possa contextualizar com a história por ela contada. Tanto Inglaterra como Portugal, países de origem dos autores aqui estudados, passavam por grandes transformações políticas e mudanças de valores que influenciaram notoriamente os títulos “Frankenstein” e “A Cidade e as Serras”.
          Mary Shelley escreveu sua mais valorosa obra entre os anos de 1816 e 1817, período onde a Inglaterra, bem como a maioria dos países europeus, já haviam sentido os impactos causados pela Revolução Industrial. Pobreza, injustiça social e péssimas condições de saneamento eram evidentes nas cidades inglesas, que, embora não constituam o único espaço onde a narrativa se desenvolve, serviram como inspiração para uma nova categoria pertencente ao romance denominada de terror gótico, onde os mistérios por detrás de uma cidade sombria, envolta em sua arquitetura secular, proporcionavam grandes histórias com seres ficcionais.
          Outro fator de grande importância para a obra foi o declínio da fé e moral católica e o crescente crédito dado a ciência e tecnologia. Filósofos e outros estudiosos formularam teorias que explicavam o surgimento do ser humano, abalando ainda mais a crença cristã. Mesmo com todos esses embates, alguns conceitos morais, característicos do Puritanismo, se mantiveram, ao passo que, assuntos como sexo ainda eram tidos como tabu e prezava-se de forma rígida os valores familiares.
          Já em “A Cidade e as Serras”, publicado em 1901 e tendo sua ambientação nas cidades de Paris e Tormes entre os anos de 1866 a 1889, carrega as influências do Liberalismo, período em que viveu seu autor. Eça de Queirós fazia parte da Geração de 70, cujo objetivo político era fazer uma ampla crítica à sociedade portuguesa ao denunciar a decadência da vida econômica, cultural, social, espiritual e identidade nacional dos portugueses. Tais situações foram resultado de um conjunto de fatores que consistiam na crença no Catolicismo da Contra-Reforma, que, entre outros males, impediu o desenvolvimento do pensamento científico e filosófico do país, a longa vigência do regime absolutista que impediu a formação de uma classe burguesa forte e principalmente a persistência numa economia baseada na exploração de colônias e na força de trabalho escrava.
          A literatura da época, principalmente os romances, tentavam resgatar a auto estima portuguesa, enaltecendo a beleza da natureza lusitana e valorizando o homem do campo. Eça de Queirós também seguia essa linha pensamento, porém, defendia que o país deveria se modernizar para equiparar-se com os demais. Tal visão é vista nitidamente na obra aqui estuda.




CRÍTICA LITERÁRIA DOS AUTORES E OBRAS

A Cidade e as Serras- Eça de Queirós

          Esse romance, publicado em 1901, é o desenrolar do conto “Civilização”, do mesmo autor. A história é o relato de José Fernandes sobre Jacinto, seu amigo e personagem principal, que troca o mundo tecnológico e civilizado, representado pela cidade de Paris, pelo mundo natural, campestre, figurado na beleza da natureza lusitana de Tormes.
          O maior destaque do romance faz-se presente na categoria espaço, fundamental para sua compreensão, pois nela formalizam-se os contrastes de diferentes mundos. Com isso, a beleza natural da quinta de Tormes choca-se com o 202 de Paris, que simboliza o mundo civilizado, gerando constantes oposições entre esses dois ambientes, presentes em toda a narrativa.
          “A Cidade e as Serras” é digna de várias leituras e interpretações graças ao seu imenso grau de riqueza literária que possui, sendo considerado por muitos críticos como a maior obra de Eça de Queirós. As alusões quase sempre referem-se a questões e valores sociais que contrapõem ou ditam o comportamento do protagonista. Na capital francesa, onde vivia cercado por luxo e inutilidades tecnológicas, ele possuía um estilo de vida desprovido de autenticidade. Já no campo, mesmo que tentando conferir ares de modernidade ao ambiente, encontra a felicidade em meio as coisas simples.
          Os demais personagens da história, divididos em dois pólos, caracterizam as atitudes de classe sociais distintas, que por sua vez influenciam o comportamento de Jacinto. As pessoas que freqüentavam o 202 representam um artificialismo social, cheio de formalidades tediosas e pré-determinadas. Por sua vez, os personagens do campo são imprevisíveis graças as diversas emoções que manifestam, especialmente a ternura, simplicidade e bondade.
          Crítico do Romantismo, fato evidenciado nas Conferências Democráticas do Cassino Lisbonense, Eça de Queirós defendia as ideias deterministas e afirmava que o homem é um conjunto de resultados, conclusões e procedimentos de circunstâncias que o envolvem. Em “A Cidade e as Serras” fica nítido que seu protagonista vivencia e comprova tal tese.

Frankenstein- Mary Shelley

Frankenstein, ou The Modern Prometheus, título original em inglês, é a criação de maior expressão de Mary Shelley. Considerado um romance de terror gótico com influências do movimento romântico, relata a história de Victor Frankenstein, um estudante de ciências naturais que, na tentativa de criar um ser vivente, acaba construindo um monstro.
A obra é passível de múltiplas leituras e interpretações, sendo o principal tema abordado a relação entre criatura e criador, claramente contrapondo valores religiosos. A época da história se passa no início da Revolução Industrial, onde a humanidade passou a controlar a natureza por intermédio da ciência, bem como a descobrir respostas para fenômenos até então incompreendidos. Todos esses fatos são ilustrados no decorrer da narrativa, mostrando uma tendência de descrença na fé católica.
Outro tema claramente presente em Frankenstein discute os valores sociais da época. Filha do famoso filósofo Willian Godwin, Mary utilizava muitos recursos literários característicos do romance godwiniano, criado por seu pai, que empregava uma forma confessional rousseauniana para explorar as relações contraditórias entre o indivíduo e a sociedade. Porém, Shelley critica os ideais iluministas promovidos por Godwin que defendiam que homens racionais teriam o poder de melhorar a sociedade, mesmo que lentamente. Em seus livros, ela ilustra que os homens não possuem controlem algum sobre a história.



 A INFLUÊNCIA SOCIAL IDENTIFICADA E ANALISADA NAS OBRAS

          Para identificar e posteriormente analisar os tipos de influência social contidas nas obras “Frankenstein”, de Mary Shelley e “A Cidade e as Serras” de Eça de Queirós,  seguir-se-á o modelo de estudo apresentado por Antônio Cândido que visa  entender uma obra literária  por meio das indicações sociais que ela apresenta, onde isso só será possível caso texto e contexto sejam analisados ao mesmo tempo de maneira íntegra e dialética.

          Na primeira obra, tem-se logo de início um fato curioso: a criatura a ser analisada não seguiu uma cronologia de vida normal. Já nasceu, ou melhor, foi criada já na forma adulta e demonstrava inteligência compatível a tal. Desde o momento de sua criação apresentou apurados instintos que posteriormente comporiam sua personalidade.
          O primeiro sentimento que o monstro recebeu foi a repulsa por parte de seu criador, Victor Frankenstein, devido a sua aparência grotesca e deteriorada. Sendo rejeitada e abandonada sem ao menos entender o porquê, a criatura lançou-se ao mundo, onde, por observação e tentativas frustradas de interação, entendeu que devido a sua aparência, não conseguiria relacionar-se com ninguém, sendo discriminada, maltratada e expulsa de todos os lugares por onde tenha andado. A reação de defesa, e consequentemente seu modo natural de agir, foi revidar as agressões e depois utilizar-se de sua força para vingar-se e causar terror a quem considerava culpado por sua desgraça.
          No texto, fica claro que único motivo que a sociedade tinha para reagir de forma negativa à criatura era unicamente devido a aparência que ela possuía. Isso evidencia-se no episódio narrado pelo monstro onde ele conta a experiência que teve em viver escondido na casa de uma família de ex-nobres, observando-os e aprendendo diversas coisas, dentre as quais ler e escrever. O ser os ajuda em segredo e estes notam sua presença e lhes são gratos. Porém, quando o encontram perto de seu pai, que era cego, o vendo da forma que era, agem da mesma forma agressiva que outros antes deles agiram. Só então a criatura torna-se amargurada e passa a portar-se como o monstro que achavam que era.
         
          Segundo Moscovici, pode-se afirmar que o ser criado pelo Dr. Frankenstein  passou a agir baseado numa das três modalidades de influência social, denominada de Conformismo, que consiste no modo de ação de um de um dado indivíduo ou grupo ser determinado pela regra de outro grupo dominante ou autoridade competente. A única solução encontrada pela criatura para sobreviver foi conformar-se de que jamais seria aceita socialmente devido a sua aparência e, tal qual agiram com ele, passou a responder da mesma forma. A ideia de que era grotesco, inaceitável e desprezível era tão arraigada em sua mente que, quando sentiu a necessidade afetiva e fisiológica de procriar, pediu a Victor Frankenstein que criasse um ser feminino, contudo, igual a ele, pois sabia que nunca encontraria sentimento positivo da parte de humano nenhum.
          Ao traçar-se um paralelo com a sociedade inglesa da mesma época do romance, facilmente encontrar-se-á referências e implicações semelhantes à obra. Não só a Inglaterra, como toda e Europa, viviam um momento turbulento, onde surgiu uma nova classe burguesa, sem vínculos com o clero ou a nobreza, tornando-se comum o “ter” ser mais importante do que o “ser”, e homens detentores de poder, beleza, luxo e educação considerada formal, ditavam as regras e eram admirados exemplos a serem seguidos.
          Já Jacinto, protagonista de “A Cidade e as Serras”, apresenta dois momentos distintos. O primeiro mostra-se enquanto morador da capital francesa e o último quando, a pretexto de transladar os restos mortais de seu avô, passa a viver em meio a natureza em Tormes, Portugal, seu país de origem.
No 202, local onde morava em Paris, agia conforme os costumes da burguesia francesa, sem autenticidade nenhuma, prezando por ostentar luxo, um alto poder aquisitivo ao comprar todas as novidades tecnológicas da época e também mostrar-se culto, ao adquirir uma grande e variada coleção de livros sendo que dificilmente lia e quando o fazia, eram sempre os mesmos volumes que procurava. Baseado no estudo de Moscovici, pode-se afirmar que Jacinto, influenciado pela sociedade, agia por Normalização, ao passo que tentava adequar-se às normas e costumes de um determinado grupo visando seu reconhecimento.
Seu comportamento mudou drasticamente assim que passou a viver no campo. Privado do costumeiro conforto, teve que habituar-se à uma vida simples, sem nenhum tipo de exigências formais. Passado o deslumbramento que teve ao reencontrar a bela natureza das serras portuguesas, agindo pelo processo de influência social denominado de Inovação, Jacinto, na intenção de adaptar o meio em que vive, aplica todos os seus conhecimentos técnicos e científicos, levando assim um pouco de progresso para Tormes. Melhora com isso os meios de produção da região e ameniza a situação precária em que viviam os seus empregados. Só então o protagonista sente-se feliz, completo. Passa a ser muito respeitado e adorado na região. Acaba por casar-se com Joaninha, prima de José Fernandes, narrador da história, e nunca mais retorna à Paris.
Contextualizando esses dois momentos acima citados, claramente identificar-se-á uma crítica por parte do autor à sociedade vigente, à medida em que exibe seus valores consumistas, sua tendência ao progresso tecnológico desenfreado, sua falta de autenticidade e consequente falsidade ideológica. Na época, Portugal passava por um forte crise de identidade nacional. O país estava desacreditado, fragilizado economicamente se comparado ao restante da Europa. A obra foi uma tentativa de Eça de Queirós de resgatar o orgulho lusitanos ao narrar as belezas da natureza portuguesa, bem como descrever o verdadeiro estilo de vida característico de seu povo, que por mais simples que fosse, possuía verdadeiros valores.



COMPARAÇÃO DA TEMÁTICA ABORDADA ENTRE AS OBRAS

Mesmo que de formas diferentes e ocorrido sobre circunstâncias distintas, é evidente que o meio social em que ambientavam os personagens em questão de ambas as obras aqui tratadas, modificou a forma que possuíam de percepção de mundo, por consequência, influenciou seus comportamentos e tomadas de decisão. Conforme já estudado neste trabalho, a abordagem desse assunto foi realizada intencionalmente por cada autor, dado o contexto social e histórico que cada um vivenciava no momento da elaboração, contradizendo o que Bakthin afirma em Para Uma Filosofia do Ato ao mencionar que os artistas, entre eles os escritores, usufruíam de temas como esse para atribuir características estéticas em suas obras de arte.
Comparando os dois livros, tendo como foco a temática abordada neste artigo, o que pode-se afirmar como maior semelhança é que, mesmo tratando outros assuntos, a principal intenção implícita de Frankenstein e A Cidade e a Serra é alertar seus leitores sobre o poder que a opinião de uma sociedade, tal qual a forma com que age e que considera como ético pode degradar um ser humano mediante esse conjunto de valores chocam-se com sua essência. É importante destacar que Mary Shelley e Eça de Queirós conseguiram isso utilizando sequências narrativas distintas, conforme será abordado adiante.
Jacinto, no começo da história, encontra-se totalmente alienado pela alta sociedade parisiense, extremamente consumista e dotado de falsos valores, ou seja, a influência social, de forma negativa, já havia realizado sua parte. Agindo por Normalização, tentava somente adequar-se ao que acreditava ser os costumes corretos, e que lhe trariam aceitação do grupo ao qual frequentava.
De uma forma bastante diferente e inovadora, o meio não degradou o caráter da criatura construída pelo doutor Frankenstein, mas sim, o formou, tendo em vista que tratava-se de um ser “nascido” já adulto, com inteligência matura para absorver ensinamentos e experiências. Por tudo que aprendeu e vivenciou, o monstro tornou-se mal, vingativo, culpando a sociedade, de um posto de vista lógico, como responsável pela sua má conduta, ou seja, agia por aquilo que Moscovici denomina de Conformismo.
Outra importante diferença entre as obras é que, ao contrário da criatura que partiu para uma terra distante afirmando que cometeria o suicídio, o protagonista de A Cidade e as Serras teve tempo de se regenerar ao ser influenciado por fatores diferentes quando mudou de meio social ao retornar para Tormes. Dotado de conhecimentos científicos e recursos financeiros, Jacinto, agindo por Inovação, mudou o ambiente, trazendo melhorias que refletiram na vida dos moradores sob sua responsabilidade. A mudança de comportamento por ele apresentado é relatado pelo narrador da história, seu amigo José Fernandes, que juntamente de outros habitantes do campo, exaltam-no, alegando que ele tornou-se uma pessoa mais agradável, compassiva e sensível.



 CONCLUSÃO

          O comportamento dos personagens principais de A Cidade e as Serras, de Eça de Queirós e Frankenstein, de Mary Shelley, foi resultado de fatores sociais acontecidos em suas respectivas vidas e que essa problemática abordada em ambas as obras foi de caráter intencional de cada autor, não sendo formuladas meramente por questões estéticas. Por fim, concluí-se que a influência social como fator de degradação do ser humano é bastante comum nas obras clássicas e, desde que analisada por uma temática adequada, esse tema é facilmente identificado e passível de classificá-lo, tendo em vista suas diferentes formas de manifestação.

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